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segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Uma bela segunda Chance

Há uns 3 anos, no PSF durante uma consulta para exame preventivo, conheci uma moça que darei o nome de Sofia. De cara, houve uma simpatia e confiança recíprocas. Durante os questionamentos rotineiros, perguntei sobre já ter tido sua primeira vez. Ela até tentou contar somente o essencial sobre sua vida sexual com o então namorado. Mas logo isso deixou de ser possível.
Eu não estava preparada praquilo.
Aos 8 anos, depois da escola, seus irmãos foram embora mais cedo e ela ficou brincando com umas coleguinhas ali perto. Ela só se lembra que, de repente, alguém a agarrou por trás e de ter acordado no hospital machucada. Simplesmente não se lembrava de mais nada e não sabia o porquê. Aquele ser a violentou tão gravemente quanto nas notícias que lemos em jornais sensacionalistas sanguinários.Com lágrimas nos olhos, mostrava sua incompreensão diante daquele ato sem demonstrar qualquer traço de ódio por aquele homem que ela jamais saberá quem era.Eu, pega de surpresa, não sabia que feições usar, que gestos fazer, que posição tomar...

E ela, em sua sabedoria simples, compreendeu.Contou que este era um assunto proibido na família. E há 10 anos, sufocava esta dor, solitariamente. Estava no seu limite emocional e chorava copiosamente.Foi uma das minhas passagens profissionais mais intensas e tocantes até então.

Desde este dia, nos vimos poucas vezes, mas em nosso olhar, é como se sempre trocássemos algo, como se soubéssemos algo muito íntimo sobre a outra, dividíamos o nosso segredo como duas amigas de infância.Ela se mudou de bairro e eu de PSF e novamente caímos no mesmo lugar, enfermeira - paciente - amiga. Agora ela estava grávida, falando bem de mim para as outras gestantes num momento em que isso era importantíssimo, e eu amei revê-la e ter a chance de cuidar mais um pouquinho daquele corpo e daquele coração tão feridos.Ela depositava em mim todas as fichas. E eu me aproveitei disso para lhe fazer o bem que eu precisava fazer a ela.

Dei meu celular, como não tenho o hábito de fazer, conversei, orientei e ela sempre fazia tudo que eu pedia. Mas nunca mais falamos sobre aquele assunto. Às quase 35 semanas de gravidez, ela me ligou falando sobre a perda do tampão mucoso. Eu a acalmei e pedi para avaliá-la no dia seguinte. Percebi que o colo estava dilatado praquela idade gestacional e o bebê, já descendo. O obstetra que a avaliou a seguir, concordou e também recomendou repouso.Uma semana depois, a bolsa rompeu, ela me ligou e pedi para ir tranqüila ao hospital. Nem precisei dizer que eu ajudaria em seu parto... Aliás entre nós este tipo de coisa nem precisava ser falado....Fui ficar com ela na maternidade. As contrações ainda eram espaçadas e não muito dolorosas, mas já estava com antibioticoterapia preventiva.. .

Enfim, usei nossos modestos recursos, bola, barra, caminhada e também a deixei um pouco em paz para seu cérebro primitivo trabalhar sossegado.Neste meio tempo, meu marido trouxe minha filhotinha de 9 meses para eu amamentar no hospital e matar um pouco a tradicional saudade. E esvaziar meus dedicados seios.

Eu, há tempos, “enamorava” uma obstetra - já uma senhora, recém contratada, com uma formação tradicionalista, mas muito interessada nas novas tecnologias para o parto natural – deixar parturientes escolherem posições espontaneamente, proteção períneal para evitar episiotomia de rotina, etc.
E Deus é tão bom para os humanistas que era o plantão dela!

Conversei bastante com ela sobre tentarmos assistir o parto da Sofia de cócoras, no leito e que eu faria a proteção perineal. Ela colocou soro com ocitócito e confesso que não tentei impedir porque receava que o parto demorasse e ela indicasse uma cesárea que era tudo que Sofia não queria.As dores ate então suportáveis aumentaram e o parto engrenou definitivamente. O colo, antes estacionado, começou a abrir e dar passagem ao bebê que decidiu descer. Logo depois, fiz um toque e vi que o bebê já estava bem baixo e o colo apagado e fiquei quietinha na minha. A médica ia fazer outro toque e eu disse estava evoluindo bem e o bebê havia descido mais. Com isso, ganhei mais tempo para a Helena (o bebê) fazer seu trabalho sossegado. Às vezes bradicardizava, mas voltava bem das contrações.

Perguntei a Sofia se queria ficar de cócoras ou outra posição e ela não quis. Ficou agressiva, como qualquer mamífero parindo sob holofotes. Quase bateu na cunhada quando foi fotografar, queria quebrar a máquina e ameaçou gritando não fazer mais força se ela mexesse na câmera!

A obstetra não resistiu a fazer outro toque e disse “já esta aqui embaixo!”. Eu perguntei “Vamos fazer aqui?” e ela concordou com a cabeça. Deu-me as compressas para proteger o períneo e chamaram a pediatra...A bebê coroou. Protegi o períneo na saída da cabeça e a emoção era tão grande que até esqueci de proteger durante passagem do corpinho. Tentei sutilmente impedir que a obstetra puxasse, mas ela não entendeu. Deve ter pensado “Como assim não puxar?”.Ela então veio, linda! Quase 2.800g. Não chorou rápido tamanha paz, mas o apgar deve ter sido bem alto, dava pra sentir. Logo ela veio pro colo da mãe aliviada.À cuidadosa inspeção, uma pequeníssima laceração superior que pedi a obstetra para não suturar e ela aceitou. Um períneo, na prática, íntegro que voltava rapidamente ao seu estado habitual.

Quase simultaneamente uma outra parturiente começou a parir. Coloquei-a de quatro e ela não queria sair desta posição, mas a pediatra pediu para levá-la a sala de parto para aspirar (a 2 metros de distância) porque tinha mecônio (como assim???). A obstetra contaminada com a humanização não pareceu muito afim, mas acabou levando. O períneo estava bem mais rígido, mas eu pedi para não fazer episio mesmo assim. Sei que não devia, mas tentei “amaciar” com os dedos, porque sabia que laceraria naquela posição horrível da mesa de parto. Então o bebê nasceu sem cortes provocados, com uma laceração facilmente suturável (que durou uns 15 minutos). O marido estava na sala e ficou muito emocionado. A nova mamãe chorava de emoção. O mecônio, como eu já esperava não fez mal algum ao filho e ele veio rápido para os seus braços.

Falei à obstetra que eu precisava ir porque já estava tarde e meus seios estavam cheios de leite. Ela agradeceu muito a minha ajuda. E o legal é que eu realmente senti esta honesta e surpresa gratidão.

Voltei à Sofia para me despedir. Ela também me agradeceu muito... Tinha aquela cumplicidade no olhar que se entende tudo, tão peculiar entre nós. Combinei de voltar no dia seguinte e dei-lhe os parabéns.

Fui embora de alma lavada. Minha mãe estava em minha casa de passagem e pouca atenção pude lhe dar. Acordei cedo no dia seguinte para voltar ao trabalho, afinal tinha sido apenas uma segunda feira agitada. Fui vê-las e mais uma vez demonstrou sua gratidão, pediu desculpas se tinha feito algo errado e respondi que era eu que devia agradece-la por ter permitido fazer parte daquilo.

Me traz muita confiança ter este tipo de atuação, mas o que mais satisfação é poder dar as pessoas as ferramentas que necessitam para se empoderarem de seus destinos e fazerem sua própria historia. Eu não estava lá por interesse. Nem mesmo recebi pelas horas que fiquei ali. Mas sei que foi um trabalho importantíssimo. Devagar, comecei a ajudar outras mulheres a parirem com dignidade e seus bebes a nascerem mais felizes. Acredito que assim, posso ajudar a construir um mundo melhor. Mas neste caso específico, evitando seja o corte da cesárea, seja o corte da episio, evitei mais uma violência contra àquela mulher. Um dia, aquela vagina e aquele anus tinham se tornado uma coisa só. Mas desta vez, ela estava intacta. Aquele períneo, um dia violado, desta vez estava perfeito. Conseguimos fazer seu bebe nascer sem machucar aquele local, antes desfigurado pelo estupro. Sua intimidade desta vez foi preservada. Conseguimos trazer seu maior bem ao mundo sem violá-la mais uma vez.
Talvez você não entenda o que estou dizendo e eu não sei se consigo explicar o que sinto. É difícil compreender sem passar pela situação e sem ter noção da sutileza sexual feminina. O que posso dizer é que foi o compromisso pessoal de uma mulher com outra. Eu sei que, se não estivesse lá, a Sofia sofreria outro corte, mas minha participação deu a ela um parto seguro, intenso e humanizado, não simplesmente um evento médico sem emoção. Zelar pela sua intimidade era essencial para a sexualidade daquela mulher e nosso mérito está em termos vencido esta pequena batalha. Mas ter ajudado foi essencial pra mim.

Estou muito feliz por ter feito parte da historia desta admirável mulher. Não só mãe e bebês estão vivos, mas também estão íntegros, apaixonados e cheios de dignidade.

Este é meu maior trabalho e minha doce vitória.

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